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FILOSOFANDO SOBRE “DIVERTIDAMENTE”

Você e suas emoções: quem controla quem?

Escrito por Ana Eliza Alvim | Publicado: Sexta, 05 Julho 2024 11:41 | Última Atualização: Segunda, 15 Julho 2024 09:53

Professor da UFLA fala sobre o filme “DivertidaMente” à luz da Filosofia

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 A animação DivertidaMente 2 chegou aos cinemas em junho e é recorde de bilheteria no mundo até o momento, em 2024. Segundo a Walt Disney Co, o filme bateu a marca de 1 bilhão de dólares de bilheteria em três semanas, menor tempo da história para uma animação. A produção cinematográfica é construída em torno da temática das emoções, uma pauta que também mobilizou, além das milhares de pessoas que têm ido ao cinema nas últimas semanas, filósofos e cientistas ao longo da história da humanidade. O professor do curso de Filosofia da UFLA Felipe Nogueira de Carvalho estuda o assunto e compartilha com o Portal da Ciência/UFLA um olhar sobre o filme e sobre a relação das pessoas com suas emoções.

Portal da Ciência. No filme, temos a impressão de que as emoções estão agindo de forma autônoma na mente da menina Riley, e ela só manifesta o resultado do comando dessas emoções. Por uma análise conjugando filosofia e psicologia das emoções, a Riley e todos nós podemos acionar alguns mecanismos conscientes para regular aquela turminha de emoções, não é?

Felipe. Para começar, é importante dizer que a concepção de emoções subjacente ao filme foi inspirada na “teoria das emoções básicas”, desenvolvida pelo psicólogo Paul Ekman nas décadas de 1960 e 1970. Segundo essa teoria, todas as pessoas do mundo compartilham um conjunto básico de seis emoções, a saber: raiva, medo, nojo, tristeza, alegria e surpresa (essa última foi deixada de lado pelos roteiristas, até porque seu estatuto como uma emoção genuína é altamente contestado). Na visão de Ekman, cada uma dessas emoções corresponde a um “programa de afeto”, isto é, um circuito biológico específico selecionado pela evolução que se ativa automaticamente sempre que estamos diante de um certo tipo de situação (uma ameaça, uma ofensa, uma perda, etc.). É por isso que vemos no filme cada uma das emoções tomando conta da sala de comando de Riley sempre que uma dessas situações se apresenta no visor.

Embora essa teoria tenha gozado de grande prestígio nas décadas em que foi desenvolvida, ela tem se tornado cada vez menos popular, e pesquisadores hoje em dia preferem pensar as emoções como tendo inteligência e propósito, e não como forças incontroláveis que tomam conta de nós. Em outras palavras, podemos aprender a usar as emoções a nosso favor em diversas situações sociais, como a alegria e entusiasmo para contagiar o público em uma palestra, a raiva em uma discussão familiar para transmitir a mensagem de que não ficamos satisfeitos com alguma ação de nossos parceiros ou parceiras, ou o medo para impedir que façamos escolhas erradas na hora de aceitar um convite suspeito de um estranho.

Para isso, precisamos primeiramente desfazer a ideia de que emoções são programas biológicos automaticamente ativados, como pensava Ekman, e abordá-las através de uma nova perspectiva, como na proposta dos filósofos Paul Griffiths e Andrea Scarantino, de pensar as emoções como “manobras estratégicas em situações sociais.” Essa ideia já está presente de certa forma desde o primeiro filme, na medida em que as emoções começam a aprender com seus erros e passam a se comportar de forma mais inteligente nas situações sociais de crescente complexidade enfrentadas por Riley. Mas pensando em nós e no que podemos aprender com o filme, se emoções são manobras estratégicas, como propõem os filósofos acima, podemos aprender a utilizá-las a nosso favor e evitar as manobras que não foram bem-sucedidas no passado. Assim, teremos emoções mais inteligentes e que nos ajudam a atingir nossos objetivos pessoais e profissionais.

 

Portal da Ciência. A narrativa do filme nos mostra que todas as emoções são importantes. Na partida inicial da qual a Riley participa, ela sente um misto de emoções que fazem parte do contexto e ajudam em seu desempenho, se expressas no momento, na situação e na medida certa. Não devemos, portanto, achar que a tristeza ou a raiva, por exemplo, são totalmente negativas. Como podemos analisar essa questão na ótica da Filosofia?

Felipe. Já na antiguidade, o filósofo grego Aristóteles afirmava que “aquele que não expressa sua raiva diante de uma ofensa é um tolo”. Podemos entender essa afirmação a partir da constatação de que cada emoção possui suas próprias condições de aptidão, e que qualquer emoção pode ser apta se for usada na situação certa e na intensidade apropriada. O medo, por exemplo, pode salvar nossas vidas em uma situação de perigo, mas pode também ser completamente inadequado perante algo inofensivo. A tristeza diante de uma perda pode sinalizar aos outros à nossa volta que necessitamos de acolhimento, mas pode também nos impedir de conquistar nossos objetivos se reagirmos com tristeza a cada pequeno obstáculo enfrentado. E a raiva pode ser importante para estabelecer limites e transmitir ao outro a mensagem de que uma ofensa foi cometida (como afirmou Aristóteles), mas nos afasta de nossos entes queridos se usada excessivamente em situações corriqueiras do cotidiano. Em outras palavras, o que é positivo ou negativo não é a emoção em si, mas seus efeitos psicossociais, de acordo com a aptidão da emoção em um dado contexto. Afinal, até mesmo a alegria, se usada em uma situação inapropriada ou com a intensidade errada, pode nos causar problemas (pense em alguém a gargalhar efusivamente durante um funeral, por exemplo).

Da mesma forma, todas as emoções de Riley têm sua aptidão em diferentes contextos. Quando a Ansiedade faz suas primeiras aparições na sala de comando, ela diz à Alegria “que as situações mais complexas que Riley enfrenta demandam emoções mais complexas”, e ela está completamente certa sobre isso. Uma situação social completamente nova para uma adolescente é um cenário repleto de desafios, e é preciso que Riley saiba dirigir sua atenção ao mesmo tempo para diferentes pessoas e transações sociais e, assim, aprender o significado social de cada uma delas naquele novo contexto. Interessantemente, há evidências empíricas de que a ansiedade facilita a alocação da atenção para estímulos novos e potencialmente relevantes; por isso, a ansiedade, de certa forma, pode nos ajudar a entender o significado de uma nova situação. O problema é quando a ansiedade persiste mesmo após essa compreensão inicial, tornando-se assim inapta, algo que o filme consegue mostrar muito bem.

 

Portal da Ciência. Em DivertidaMente 2, a Ansiedade foi capaz de mexer com a essência da Riley, o “senso de si”, como chamado no filme - a percepção de que a menina tinha de si própria, além de provocar insônia, abalar as amizades e mover a Riley pela ideia de que precisava “se dar bem o tempo todo”. Quem convive com a ansiedade, sabe que esse é realmente um desafio. Como lidar com essas informações?

Felipe. A ansiedade é uma emoção interessante, que merece um olhar mais aprofundado. Como vimos na resposta anterior, a ansiedade pode ser apta em alguns contextos, sobretudo em situações sociais novas e desafiadoras, por seu efeito facilitador na alocação da atenção a estímulos novos e socialmente relevantes. No entanto, se pensarmos em nossa definição de emoções como “manobras estratégicas em situações sociais”, essas manobras podem ser úteis em um contexto e ruins em outro (pense em como uma estratégia de convencimento pode funcionar muito bem com algumas pessoas e ser desastrosa com outras). O que acontece ao longo do filme é que a Ansiedade passa a querer exercer funções que estão além de suas capacidades, reprimindo as outras emoções (no filme, literalmente) para que ela possa exercer o controle da sala de comando. E nesse momento qualquer aptidão inicial que ela possa ter exibido se transforma em completa inaptidão, pois claramente a ansiedade não serve para estabelecer nossos objetivos ou construir nossa autoconcepção. Através da ansiedade, Riley se vê como alguém que não é boa o suficiente, e seus objetivos passam a ser, exclusivamente, “entrar no time de Hockey”, sob quaisquer meios necessários. Ou seja, como a ansiedade nos leva a um hiperfoco, ela frequentemente foca em objetivos menores (entrar no time) e nos faz perder de vista os objetivos maiores (ser uma pessoa legal). Às vezes, focar nos objetivos menores é importante, mas não podemos perder de vista os maiores.

 

Portal da Ciência. Há um momento na história em que até a Alegria se descontrola e fica nervosa, sugerindo que todos estão sujeitos ao descontrole das emoções. Como interpretar esse fato?

Felipe. Além de suas qualidades como uma emoção sempre esperançosa e positiva, a Alegria é retratada no filme como uma espécie de líder natural, que sempre está no controle e sempre sabe o que é melhor para Riley. No entanto, à medida que a garota cresce e as situações se complexificam, a Alegria admite que já não sabe mais o que fazer, o que é absolutamente normal. Afinal, se pensarmos em emoções como manobras estratégicas, isto é, como habilidades, por mais que desenvolvamos e treinemos nossas habilidades, nós ainda podemos falhar. Eu sei andar de bicicleta, mas ocasionalmente ainda posso cair ou perder o controle, sobretudo quando me encontro em um novo tipo de situação. A falibilidade é uma característica básica de nossas habilidades, e quando isso acontece, deve-se ser compassivo consigo mesmo e admitir que nem sempre se está pronto para qualquer tipo de situação. Podemos pensar que a situação em que nos encontramos é exatamente como outra encontrada anteriormente, mas, no mundo social, as situações são altamente dinâmicas e mudam o tempo todo, e podemos falhar em identificar o tipo de situação em que nos encontramos, ou a melhor forma de agir nesse tipo de situação. Podemos superestimar nossas próprias habilidades emocionais, ou não perceber que naquele dia estamos cansados ou de mau humor. O importante é sermos honestos e admitir que nossas habilidades podem falhar, mas que podemos também aprender com nossos erros e aprimorá-las cada vez mais.

 

Portal da Ciência. O Medo no filme tem passagens em que fica evidente sua utilidade. Na cena em que as emoções estão caindo de uma grande altura, são salvas pelo paraquedas que o medo surpreendentemente traz consigo. Como seria a vida de Riley e de todos nós sem o medo?

Felipe. O neurocientista Joseph Ledoux, da Universidade de Nova Iorque, conta uma história muito interessante sobre uma paciente denominada S.M. Essa paciente fora diagnosticada com uma lesão focal bilateral na amígdala, uma região do cérebro importante para a ativação de circuitos neurais de defesa ligados ao medo. Na falta de uma amígdala funcional, S.M. demonstrou em inúmeros estudos uma capacidade severamente reduzida de sentir medo, não demonstrando nenhuma reação emocional a aranhas e serpentes vivas, a um passeio em um trem-fantasma ou a exibições de filmes de terror. Além disso, S.M. exibia déficits significativos na cognição social, demonstrando uma confiança interpessoal inabalável e mantendo comportamentos benevolentes e leais mesmo em resposta a traições explícitas e contínuas de seus interagentes. S.M. é um exemplo claro de como o medo é importante para nos manter seguros e nos ajudar a tomar boas decisões, algo que o personagem de DivertidaMente faz muito bem em relação à Riley (o que não significa que não possa também ser ocasionalmente inapto em situações inofensivas).

 

Portal da Ciência. No filme, as memórias desagradáveis que foram arquivadas voltam à cena a partir de um determinado acontecimento, o que sugere que o melhor é acolhê-las, ressignificá-las. Isso também tem relação com a perspectiva de entendermos as emoções como habilidades?

Felipe. Exatamente. Afinal, se pensarmos em emoções como habilidades, as memórias terão um papel importante no desenvolvimento e exercício dessas habilidades. Isso vale tanto para habilidades motoras, como andar de bicicleta, quanto para habilidades emocionais, como usar a raiva ou a tristeza em interações sociais da maneira apropriada. Quando vou andar de bicicleta em uma trilha de terra, lembro-me de outras vezes em que andei em situações semelhantes, e quando vou discutir com um colega de trabalho sobre como executar um determinado projeto, lembro-me de nossas interações passadas e de temas que são sensíveis a ele (entre outras coisas). Agora, imaginemos que, quando vou interagir com esse colega, decido-me lembrar apenas de interações bem-sucedidas em que tudo deu certo e nos entendemos perfeitamente; convenientemente, esqueço-me de certa vez em que ele se ofendeu quando o interrompi, ou de como ele ficou magoado quando esqueci de lhe dizer bom dia. Sem essas memórias, o que me impede de repetir essas gafes novamente? Muitas vezes, memórias ruins podem ser desagradáveis ou difíceis de lidar. Como fez a personagem Alegria no filme, às vezes parece ser mais fácil jogá-las para bem longe, onde nunca mais entrarão em nossa consciência novamente. Mas, ao fazê-lo, arriscamos repetir os mesmos erros.

Além disso, memórias desempenham um papel importante em nossa autoconcepção (o que no filme é chamado de “senso de si”). A forma como penso em mim mesmo, meus valores morais, minhas habilidades emocionais, minha dignidade e meu valor percebido são parcialmente determinados por minhas ações passadas e o valor e significado que atribuí aos meus erros e acertos. É a partir desses fatores que construo uma narrativa sobre o tipo de pessoa que sou e quais ações são, ou não, compatíveis com essa minha autoconcepção. No início do filme, Riley pensava em si como “uma pessoa legal” - o que é definitivamente verdade – mas tal autoconcepção vinha muito do fato de a Alegria manter na sala de comando apenas memórias felizes em que Riley agia corretamente, ignorando todos os seus equívocos, falhas morais e embaraços. Mas, após as memórias “inconvenientes” virem à tona no final do filme, Riley continua a pensar em si mesma como “uma pessoa legal”, mas agora como uma pessoa legal que também erra, comete falhas morais, se mete em situações embaraçosas, toma decisões erradas, e assim por diante. Essa é uma autoconcepção mais madura e honesta, que acompanha o desenvolvimento emocional e cognitivo de Riley.

Texto: Portal da Ciência

 
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